"Periferia é periferia
Em qualquer lugar "
Racionais Mcs

Mais do que nunca, a periferia é o centro. Hoje, a condição periférica não é mais uma marca singular presente apenas em países latino-americanos, africanos ou asiáticos. Com o avanço da espoliação capitalista e da precarização das condições de reprodução da vida, ela virou uma regra mesmo nos países centrais. E ela não se refere somente aos territórios urbanos das grandes cidades: as periferias são os sertões, as florestas, as regiões pobres no Norte e Sul globais. É composta por povos originários e tradicionais, trabalhadores formais e precários, desempregados, subempregados, imigrantes e refugiados, em todo o mundo. Independentemente de onde estejam, afinal, "periferia é periferia, em qualquer lugar".

Periferia não significa, assim, uma parte marginal e excluída do mundo: ela é a totalidade em movimento. Entender o mundo hoje e as possibilidades de sua transformação só é possível se voltarmos nosso olhar para as especificidades do desenvolvimento do capitalismo periférico. Periferia é a cara mais evidente assumida pela classe trabalhadora hoje. Ela dá forma a uma imagem mais próxima e concreta da classe em sua diversidade, dos aspectos de sua vida, incorporando também seu elemento territorial, espacial. Por isso, mais do que uma disputa de afirmação de uma identidade particular, dar centralidade à periferia é, na verdade, um meio de pensar e tensionar as ideias de universalidade, de modo a agregar novos sentidos políticos e simbólicos para a gramática da esquerda e sua capacidade de se renovar, dialogar e se enraizar a partir de um projeto político construído de baixo para cima.

Como totalidade, periferia não se reduz à luta por representação e inclusão, nos moldes de um grupo excluído que exige do Estado o cumprimento de demandas e direitos sociais; a periferia questiona o próprio Estado e seu papel em homogeneizar e organizar a vida hierarquicamente e violentamente, decidindo quem vive e quem morre. As estratégias periféricas de sobrevivência - entre elas, fundamentalmente, a educação popular - são tecnologias ancestrais que criaram variadas formas de organização e luta populares fundamentais para a necessária disputa de hegemonia política. Enquanto movimento, mais do que fazer parte da gestão de conflitos e da máquina da institucionalidade, o potencial da luta periférica é questionar noções e lógicas dominantes, recriando a centralidade do território da classe trabalhadora como um projeto de transformação global, bem como da unidade da diversidade na construção de uma política universalista por uma sociedade igualitária.

Pensar o movimento dos periféricos e seu papel ativo na elaboração de um projeto amplo, contra-hegemônico, de transformação, tornou-se ainda mais necessário com a periferização do mundo. A importação mecânica de modelos emancipatórios europeus ou a adesão a métodos populistas, construídos de cima para baixo, se mostraram problemáticos. Precisamos inverter a ordem dos termos: reivindicar a centralidade da experiência periférica, a força da experiência que vem com a luta contra a escassez e todas as formas de violência e opressão nos territórios - disputas fundamentais para a imaginação estratégica revolucionária e para a radicalidade política, necessárias para uma mudança estrutural da sociedade.

Este texto é uma iniciativa de militantes que vieram da experiência de organização periférica, do movimento popular, sindical, negro, feminista, indígena, LGBTQIA+, estudantil e, em especial, da construção da Rede Emancipa, movimento social de educação popular que atua há dezesseis anos nas quebradas de todo o Brasil e em países do continente africano. Ele foi escrito principalmente a partir de formulações políticas criadas no interior dessa experiência militante, reflexões despertadas por diferenças de ordem estratégica e organizativa com modelos, formas e lógicas de se pensar o fazer político que nos deparamos durante a nossa trajetória de construção e luta, e que, ao nosso ver, estão atreladas às debilidades que organizações de esquerda ainda têm em encarar temas fundamentais, como trabalho de base, enraizamento, antirracismo e a relação entre partido e movimento - temas que foram explicitados e ganharam ainda maior centralidade, sobretudo, após Junho de 2013, que esse ano completou seus dez anos. O grande motivador deste texto é compartilhar algumas conclusões e ensinamentos que extraímos da reflexão em torno desses temas e experiências, com vistas à construção e fortalecimento de uma perspectiva constitutiva da nossa prática: a centralidade da construção de um projeto político das periferias. Para isso, o texto se encontra dividido em quatro partes principais. As três primeiras contêm implicações estratégicas que justificam e fundamentam a construção e a centralidade de um projeto das periferias, oferecem leituras sobre: 1) a atual crise e seus principais dilemas; 2) a formação socioespacial brasileira e sua atual conjuntura; e 3) a questão da organização política hoje. Na quarta parte, por fim, apresentamos propriamente alguns dos princípios político-programáticos que guiam tal projeto.

Aqui, afirmamos que não queremos estar à margem da política. Queremos nos apropriar de tudo que o centro e as elites acumularam sob nosso custo, de nossas vidas. Esse texto, além de ser uma formulação em movimento, é também uma convocação para que você faça parte conosco dessa luta.

Esperaçar em tempos de barbárie

"Combinaram de nos matar. Mas nós combinamos de não morrer"
Conceição Evaristo

1. Vivemos mergulhados em uma crise estrutural profunda ancorada na escalada da barbárie. Se, no período colonial, o processo de expansão capitalista foi marcado pela exportação de um modelo de exploração e violência dos países ricos para todo o mundo, hoje são as periferias os laboratórios centrais que exportam as tentativas do capital de “normalizar” e manter a todo o custo seus padrões de acumulação. Aquilo que sempre foi regra na periferia do capitalismo - os regimes precários de trabalho, a espoliação de bens naturais e sociais, a superexploração do trabalho e do cuidado e a criação de uma massa de trabalhadores/as destituídos de direitos e de dignidade - tornou-se um fenômeno global. A crise aberta em 2008 aprofundou esse processo, com a adoção de medidas de austeridade e ampliação da política de morte (necropolítica) em todo mundo. A Palestina, hoje, é um dos exemplos mais concretos disso, onde se vê um verdadeiro extermínio de uma grande parcela do povo pobre, que é tornada descartável pelo desenvolvimento capitalista. A intensificação da morte, a exploração e a exclusão do povo guarda vínculos profundos com a volta do neofascismo e com novas formas políticas de violências estatal, como tentativas de restabelecer a ordem e o consenso social por meio da força. Com a pandemia, também assistimos a escalada do sofrimento social, que atingiu patamares inéditos com a multiplicação de epidemias - inclusive de depressão, ansiedade e toda sorte de ataques à saúde mental e psíquica do povo que vive cotidianamente a mais dura realidade desse sistema.

2. A crise que vivemos não é apenas um intervalo ou um momento de reacomodação de forças, mas um período histórico. As mudanças na economia e no trabalho são profundas e estruturais, e, por hora, não têm solucionado, mas sim, aprofundado as contradições do sistema e seus sintomas sociais e ambientais. Se comparado a outros momentos de crise capitalista, esse parece inédito por ter sido acompanhado por um esgotamento de horizontes de expectativa sem precedentes. Se o século XX foi marcado pelo otimismo em relação ao futuro, alimentado por grandes promessas de progresso, revolução, em direção ao novo, hoje estamos cercados por visões distópicas. Nesse cenário, tornou-se mais difícil imaginar, nomear e construir respostas novas que não sejam mera enunciação do passado. A ideia de que a massa de capital que circula no mundo financeiro possa ser reinvestida em uma retomada produtiva parece absolutamente irreal. A recuperação de relações trabalhistas baseadas em contratos de trabalho formal, mais permanentes e regulamentados, é quase uma miragem. Da mesma forma, ainda que reformas pontuais e instrumentos compensatórios e pacificadores sejam sempre possíveis, são, no geral, limitados. A resposta ineficiente das principais potências mundiais à crise climática é o exemplo mais perverso de que, mesmo diante de riscos incontornáveis à vida no planeta, a sede de expansão capitalista é praticamente incontrolável politicamente e as soluções parciais possíveis se demonstram ineficazes para conter a barbárie. Chegamos a tal ponto que passou a ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

3. Mas a verdade é que não há derrota definitiva enquanto houver luta - e esse período de crise foi acompanhado por muitos protestos e mobilizações populares. Elas são as principais fontes de esperança em meio ao ceticismo e à desilusão do colapso iminente. O descontentamento e a revolta com um mundo "sem futuro" tornou-se combustível para a insurreição de uma importante parcela social que foi atingida em cheio pelo desemprego, pela fome, pela devastação ambiental e pela necropolítica: os povos originários e os setores racializados, feminizados, precarizados e informais da classe trabalhadora que vivem nas periferias. A resistência desses setores são um exemplo de que a política de morte sempre produz sua própria negação: a luta pela vida. Ela se expressou na multiplicação de atos e greves, que resultou no crescimento da atividade sindical e dos movimentos sociais organizados, principalmente desde 2011, mas também numa forte presença dos “desorganizados”, setores desconectados das organizações e representações políticas tradicionais, na eclosão de ações fora dos locais de trabalho, com métodos de ação direta, distintos da formalidade das negociações fordistas.

4. As lutas urbanas e mobilizações explosivas que temos visto na Europa e nos EUA, protagonizadas em sua maioria por imigrantes, negras/os e periféricos, assim como a resistência indígena amazônica, têm sido exemplos importantes. A ausência de alternativas políticas que sirvam como ferramenta estratégica para os periféricos em luta é um dos obstáculos do tempo, aliada à violência estrutural dos nossos dias - sempre proporcional ao medo de que tais lutas se desenvolvam.Parcela importante das esquerdas se acomodaram ao poder ou estão presas a reproduzir concepções políticas anacrônicas, próprias do partido e do movimento operário europeu do século XIX, sem conseguir dialogar, se atualizar e compreender esse novo momento da luta e o novo padrão de mobilização e agitação dos subalternos. Nos encontramos, assim, diante de uma dupla encruzilhada: como atualizar a tradição de luta dos oprimidos? De que forma podemos decifrar o enigma de uma emancipação transnacional num mundo sem alternativas? Com que tipo de organização se dará a luta?

5. Para nós, uma das questões postas para a atualização do projeto de emancipação diz respeito à necessidade de reinventar uma política internacionalista que seja capaz de superar a atomização e a fraqueza das organizações políticas de esquerda. A periferização do mundo tem como consequência estratégica a necessidade de fortalecer o circuito transfronteiriço das periferias, no sentido político e geográfico, conectando as lutas sociais que estão sendo organizadas de forma localizada, molecular e enraizada nos territórios. É necessário um internacionalismo que as conecte em rede, de baixo para cima, a partir dos espaços onde acontecem (na casa, na escola, na comunidade), por meio do trabalho cotidiano de reuniões, círculos e mobilizações coordenadas. Além disso, não podemos nos guiar por uma bússola quebrada, que aponta sempre para o Norte. Por mais importantes que sejam as articulações políticas e a solidariedade com as lutas no centro do sistema capitalista, não só é necessário, como também perfeitamente possível e urgente, estabelecer relações políticas com os países do Sul Global e da periferia mundial. O exemplo da Rede Emancipa, de relações construídas a partir de um trabalho concreto de apoio a estudantes de Guiné, Cabo Verde e Angola demonstra uma maneira de iniciar um trabalho social que permita um internacionalismo de novo tipo. Se não há justificativa para não estreitar laços de solidariedade e construção comum entre militantes do Brasil e dos países africanos, também é verdade que mesmo a barreira da língua não é desculpa quando se tratam, por exemplo, dos países lusófonos. É preciso superar uma concepção de internacionalismo que toma como ponto de partida e referência pressupostos colonialistas e racistas dominantes.

6. Um novo internacionalismo, que construa pontes sólidas com os países periféricos, é capaz não apenas de corrigir os silenciamentos e fortalecer um contraponto aos discursos dominantes colonialistas sobre o passado e o presente histórico, mas, sobretudo, resgatar um novo senso de futuro. Tanto a América Latina quanto a África carregam um histórico fundamental de experiências de organização social e política dos de baixo, de base indígena, negra e trabalhadora (como a Revolta dos Malês, a Balaiada, o Cangaço, os Zapatistas e as lutas anticoloniais e por libertação nacional). Elas compõem a memória histórica da tradição dos oprimidos e periféricos, servindo de inspiração e ensinamento. Sua rememoração é fundamental para elaborarmos a atualização do projeto dos de baixo hoje. Além disso, enquanto os países ricos (sobretudo europeus) vivem uma crise com o envelhecimento de sua população e com dificuldades de renovação da mão-de-obra, a África é hoje o continente que mais cresce em termos demográficos. O continente não só tem a juventude do mundo, como também a classe trabalhadora fundamental para manter a máquina do capital em funcionamento nos próximos anos, algo que é possível de se verificar nas alterações no perfil da população e nos conflitos europeus. Assim, não é à toa que a pobreza extrema, os golpes, o militarismo, a guerra, o racismo ambiental, a xenofobia, a violência e a política de extrema-direita se fazem presentes nos países periféricos, como mecanismo da necropolítica do capital para impedir que alternativas políticas floresçam nesses territórios. As experiências latino-americanas e africanas como centros de contradição nos ajudam, assim, a estar mais próximos do futuro do mundo e pensar alternativas para ele.

7. A emergência climática e a crise ambiental que vivemos atualmente também reafirma a importância estratégica das periferias globais. Por um lado, é principalmente nas periferias do capitalismo, nas Américas, África e Ásia, onde estão as florestas, os biomas e as bacias hidrográficas fundamentais, que atraem o interesse geopolítico e a cobiça dos países ricos, além de serem alvos de disputas múltiplas de diversas das corporações internacionais. Por outro lado, são os pobres e periféricos os mais atingidos pela crise do clima, multiplicam-se os casos de mortes e a crise de refugiados climáticos, vítimas de eventos extremos e cada vez mais comuns como calor extremo, incêndios, chuvas intensas, secas, destruição de culturas alimentares por deslizamentos de encostas, enchentes, inundações e furacões. Está em xeque, neste momento, uma defesa fundamental da vida que passa centralmente por enfrentar a sanha capitalista e o modelo predatório e extrativista de desenvolvimento. A defesa da Amazônia,dos territórios e dos povos nos múltiplos países que vivem nesse bioma tem que ser central de qualquer tarefa internacionalista e anticapitalista neste momento, com a construção de alternativas políticas e econômicas sustentáveis e intransigentes na defesa do meio ambiente.

8. O resgate de um horizonte estratégico também passa por repensarmos as teorias da organização política de um ponto de vista periférico, haja vista que as formas atuais de resistência à lógica autofágica do capitalismo estão emergindo de baixo para cima, em escala internacional. Delas, tem surgido o melhor dos exemplos de organização da luta popular que apontam para formas de superação dos limites de uma esquerda desenraizada e elitizada, que assume papel no gerenciamento dos conflitos por meio de posições institucionais, mas não consegue se transformar em alternativa real para o povo e organizar sua ação coletiva. Entendemos que tais exemplos têm apontado, sobretudo, para dois elementos fundamentais para o projeto que objetivamos. O primeiro é a própria necessidade de colocar no centro o elemento territorial de organização: estar onde está a nossa classe, unificá-la em rede internacional e não aceitar a divisão das categorias de trabalho imposta pelo capital, entendendo que, mesmo com as particularidades, é preciso ter uma só estratégia. As novas formas de auto-organização política dos trabalhadores enquanto classe passam por uma série de contradições impostas pela vida concreta nas periferias. Uma nova alternativa só poderá ser construída, portanto, se estiver enraizada nas favelas, nos quilombos, nas florestas, nos guetos e na organização dos trabalhadores precários e das vítimas de violência do Estado. Ou seja, se estiver na ponta, onde está a maioria do povo e onde a opressão do capital é mais sentida. O segundo elemento é a recusa das falsas soluções que abraçam o chamado campismo ou qualquer alinhamento automático por supostas verdades ideológicas de esquerda que, na maior parte das vezes, acampam em posições estéticas e não enfrentam os reais problemas e as contradições centrais da luta do povo, impossibilitando que as lutas nacionais ganhem a força da solidariedade global. Para inverter isso, é preciso, de baixo para cima, superar as posturas messiânicas, apostando na educação popular e no trabalho de base como motores principais de organização e solidariedade internacional.

Brasil Periferia

"Esse gueto invisível que faz do negro brasileiro ser apenas elemento consentido pela população branca e rica, autoritária e dominante, é que deverá ser rompido se o Brasil não quiser continuar sendo uma nação inconclusa, como o é até hoje; isso porque teima em rejeitar, como parte do seu ser social, a parcela mais importante para a sua construção"
Clóvis Moura

1. O Brasil é um país profundamente desigual e periférico. A nossa estrutura social é fruto da formação histórica de um capitalismo de tipo dependente, associado a um supremacismo branco de herança colonial e patriarcal. Isso se expressa no apartheid social que existe no país, marcado por um contraste abismal entre um pequeno punhado de bilionários, traduzido no sobrenome de algumas famílias de elite, e uma grande massa pauperizada, que tem cor e CEP. As desigualdades também se materializam em termos espaciais, com a expansão de um moderno parque industrial (especialmente no Sul e Sudeste) e a diferenciação entre regiões "pobres" e "ricas"; entre o que é "centro" e "periferia"; ou ainda, a marcação do que é periferia dentro da periferia - em termos econômicos, políticos e geográficos, como transposto na polarização interna entre regiões Norte-Nordeste e Sul-Sudeste.

2. O processo de segregação racial e de transferência de renda das elites escravistas para a renda da terra, que estabeleceu no país a maldição dos latifúndios improdutivos, são partes estruturais da condição periférica brasileira, pois o nosso processo de modernização não levou à superação das formas arcaicas de opressão e exploração herdadas da colonização e da escravidão, mas sua atualização, em um novo patamar. Ou seja, na variante brasileira do desenvolvimento capitalista, há sempre a reposição do atraso. Atingimos a modernização, mas sem deixar as desigualdades para trás. Assim, em pleno século XXI, o país é dominado pelas corporações do agronegócio no campo, pela devastação ambiental, pelo extermínio dos povos originários, pela destruição da cidadania em função do capital imobiliário urbano, pela fome,pelo analfabetismo, pela superexploração do trabalho e pela violência, estabelecida como prática política permanente e como método. O racismo, bem como a cultura do patrimonialismo, do clientelismo, do patriarcado e do mandonismo, continua a conformar as dinâmicas de poder no país, sustentadas na prática de corrupção, pilhagem e de extermínio da negritude - quase sinônimo de povo pobre. O processo de modernização dependente marca nossa história, de modo que bloqueou e represou, assim, o processo de descolonização de nossa formação social em todos os seus aspectos (da organização da economia às relações raciais; das estruturas do poder político aos padrões de sensibilidade), contendo tal processo nos limites dos interesses de classe da burguesia interna e transnacional associadas. Dessa forma, os fundamentos coloniais, senhoriais e escravocratas de nossa origem histórica são permanentemente atualizados através da própria modernização dependente. Assim, se mantêm amplas massas do povo trabalhador marginalizadas em relação ao plano da ordem civil e socioeconômica, ou seja, em relação à nação, que se afirma sistematicamente como uma esfera de integração sociopolítica restrita aos que podem vivenciar a efetividade dos direitos na sociedade nacional como um privilégio social.

3. O bolsonarismo é um capítulo um tanto assustador do aprofundamento da condição periférica no Brasil. Ele representou a emergência de um bloco agro-militar fundamentalista religioso que almeja fazer do Brasil uma grande fazenda de soja, uma mina a céu aberto, transferindo a nossa riqueza para o exterior. É como se tivéssemos regredido, em novos termos, para um ciclo agrário-exportador, anterior aos anos 1930, que precedeu o ciclo de hegemonia urbano-industrial encerrado na década de 1980. Esse projeto, que adquiriu uma força política e eleitoral nada desprezível, pode ser interpretado, nesse sentido, como uma espécie de revanchismo histórico da elite branca escravocrata. A incompatibilidade do modelo bolsonarista de desenvolvimento com a democracia também revela como modernização e democratização nem sempre andam juntas no processo brasileiro. Nesse sentido, o bolsonarismo deu uma nova forma a problemas um tanto enraizados e latentes na experiência brasileira, que foram atualizados às formas vigentes de dominação. A violência, o ressentimento e o impulso de destruição que ele simboliza não podem ser compreendidos sem o histórico brasileiro de normalização da barbárie, que passa pelas marcas da colonização, da escravização e da ditadura militar. A superação do bolsonarismo passa, portanto, por realizarmos um acerto de contas com o nosso passado, atingindo as últimas consequências da descolonização enquanto processo histórico. Ou seja, impulsionando um processo de libertação nacional-popular, através da afirmação hegemônica do povo trabalhador, que faça da periferia o centro de nossa afirmação histórica.

4. A emergência do bolsonarismo colocou, desse modo, ainda mais ênfase para uma questão constante da luta das periferias no Brasil: como eliminar o apartheid social? Com que tipo de revolução social? Apesar das amplas esperanças depositadas no PT, o chamado neodesenvolvimentismo, no qual se escoraram as políticas dos 13 anos de petismo,de 2003 a 2015, não significou uma ruptura ou grande enfrentamento às estruturas de dominação no Brasil. Ele, na verdade, representou a combinação entre aspectos das antigas teorias desenvolvimentistas (como crescimento econômico, industrialização, papel regulador do Estado e políticas sociais compensatórias) e os ditames do neoliberalismo (compromisso incondicional com a estabilidade monetária, austeridade fiscal, ausência de regulação ao capital internacional e financeirização), configurando, a partir da base social acumulada pelo PT em mais de duas décadas, um governo social-liberal, pautado pela lógica dos pactos e conciliação de classes. A partir de políticas conjunturais e de um arranjo político que continuou refém das estruturas conservadoras e oligárquicas, o discurso neodesenvolvimentista apostou na ilusão da estabilidade e no mito da possibilidade de um ciclo endógeno de crescimento e certa distribuição de renda, que foi desestabilizado pela "marolinha" crise de 2008, que logo se demonstrou um grande "tsunami".

5. A explosão social das Jornadas de Junho de 2013, nesse sentido, foi um momento singular da história brasileira, a partir do qual não só se abriu uma nova paisagem e um clima político instável no país, como se deixaram expostas as fraturas e insuficiências do projeto neodesenvolvimentista. As ruas expressavam indignações represadas em relação às péssimas condições de vida, especialmente nas aglomerações urbanas; à corrupção e à dilapidação do patrimônio público; à lógica inquestionável do consumo em contraste com os péssimos serviços públicos; à propaganda e as obras faraônicas da Copa e das Olimpíadas em contraste com a permanente desigualdade social e agruras cotidianas do povo; à carestia em contraste com as promessas de mudança efetiva que nunca chegavam. Junho, portanto, expôs a fragilidade brasileira, que se colocou no lugar de importar, por meio da aceitação subalterna da financeirização e diversas formas de espoliação, a crise dos países centrais assolados pela superacumulação de capital.

6. Além disso, os protestos de junho também demonstraram como a lógica da conciliação levou o PT a perder sua referência mais importante para os capitalistas: o controle do movimento de massas. Ao limitar a ação política ao jogo institucional e deslegitimar a ação de movimentos de esquerda que criticavam ou não compunham as táticas de governo, o petismo não apenas não conseguiu dialogar com o sentido progressivo de junho, como foi rifado pela burguesia em detrimento de outros setores oposicionistas, que passaram a assumir uma roupagem antissistêmica e anti-institucional para capitalizar o mal-estar expresso nas ruas e se apresentar como uma nova alternativa viável. Foi nesse contexto em que se deu o gradual avanço de representantes legítimos da lógica de pilhagem no Brasil, expressos fundamentalmente pelo "lavajatismo" e pela coalizão reacionária bolsonarista. E o resultado foi um tanto traumático: a marca da situação brasileira que se desenvolveu após o golpe de Dilma, que levou Temer e Bolsonaro ao poder, foi a do avanço sem precedentes de uma política de espoliação ultraneoliberal, com retiradas de direitos sociais, privatizações, contrarreformas (como a trabalhista e a da previdência), avanço indiscriminado do agronegócio e do extrativismo predatório, criminalização da pobreza, desemprego e avanço da carestia.

7. É evidente que, nesta conjuntura, a vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro em 2022 deve ser vista como uma grande vitória democrática do povo brasileiro, fundamental para revidar e conter a aceleração da barbárie representada pelo bolsonarismo. As periferias, vale dizer, tiveram um peso central nessa vitória, haja vista a importância das regiões Norte e Nordeste no resultado eleitoral. Mas o reconhecimento da importância histórica desta vitória não significa entregar um cheque em branco ou abandonar o sentido progressivo de Junho em busca de algo verdadeiramente novo na experiência política brasileira. É preciso continuar fortalecendo, nos movimentos sociais e políticos, a autonomia que nos permite sermos capazes de nos mover de maneira independente e crítica ao governo sempre que necessário, ao mesmo tempo em que participamos da articulação mais ampla, que visa gerar conquistas reais para o povo e enfraquecer a extrema-direita. Nesse sentido, o atual momento exige que estejamos juntos de um movimento de frente única massiva de rejeição à pilhagem e ao reacionarismo da coalizão bolsonarista, porém, simultaneamente, devemos continuar buscando também, por dentro desse movimento, superar os limites do próprio projeto lulo-petista, levando até o fim uma política que tenha como centro a mobilização popular para derrotar de vez a extrema-direita. Se temos que apoiar todas as medidas democráticas e progressistas do governo que beneficiem as periferias e combatam e punam os golpistas e extremistas de direita, não podemos ser coniventes com medidas antipopulares, fundamentalmente aquelas que seguem ditames liberais na economia, que ameacem direitos adquiridos, que prejudiquem a vida do povo e criam - como fizeram em governos petistas anteriores - espaço para que a extrema-direita volte a se organizar. Em resumo, nesse processo, é necessário que os movimentos sociais e periféricos mantenham sua autonomia e, ao mesmo tempo, sabendo que a ameaça reacionária está longe de se encerrar, priorizem relações unitárias, fortalecendo ações comuns, unidade e enfrentamento intransigente às pautas e políticas dos de cima.

8. Isso reforça outro grande ensinamento do período aberto por Junho de 2013 no Brasil: ter escancarado a importância do enraizamento nas periferias, que foram progressivamente interpeladas e dominadas por instituições e ideologias conservadoras. A extrema-direita cresceu não apenas devido a sua capacidade de mobilizar a opinião pública nas redes, mas ao seu enraizamento social, amparado, entre outros, na ascensão das igrejas neopentecostais, que, à sua maneira, fornecem amparo às populações nos territórios, com trabalho social, propaganda sistemática e organização comunitária ativa, sob a direção majoritária de lideranças comprometidas com um projeto teocrático e fascista de sociedade. Além disso, Junho evidenciou como mudanças sociais e estruturais só acontecem quando há mobilização social com enraizamento territorial aliada a uma força política independente e de massa, capaz de ultrapassar a encruzilhada de pensar a renovação sob a hegemonia do velho. Para voltar a ter força real no jogo da dominação social, não basta que a esquerda se limite à constituição de frentes eleitorais ou novos pactos de governabilidade: é preciso mobilização permanente e muito trabalho de base e organização popular nos territórios. Como demonstram os próprios rumos da experiência petista nos anos 2000-2010 e seus limites atuais, ainda que o aparelho de Estado pese, é preciso estar presente onde está a classe trabalhadora, disputar os elementos simbólicos, vivendo e sentindo com a vivência e o sentimento popular (inclusive, com os componentes críticos e libertadores de sua religiosidade), para construir uma visão contra-hegemônica à estrutura racista, oligárquica, patrimonialista e clientelista histórica do país. Sob essa ótica, ao contrário do que tem sido regra inclusive na esquerda radical, as eleições, mais do que um fim em si mesmo, devem ser vistas, antes, como mais um momento da organização popular. É preciso usar as eleições para conquistar força e representação que estejam de fato comprometidas não com a estreiteza de suas organizações políticas ou a reprodução de seus aparatos e figuras públicas particulares, mas com colocar, na teoria e na prática, os aparatos da democracia burguesa conquistados com apoio popular a serviço das periferias.

9. Nesse sentido, a herança das Jornadas de Junho também reforça a necessidade de se pensar em uma teoria da organização política que consiga, ao mesmo tempo, dialogar e ir além da política institucional - um problema premente da esquerda no Brasil hoje. Para além do tempo das campanhas eleitorais, é preciso superar a fragilidade das organizações nas favelas e periferias metropolitanas e rurais. Isso significa entender e viver o tempo e o espaço das periferias como centro da nossa estratégia, onde estão os povos indígenas e originários, os quilombolas, ribeirinhos, os sertanejos, deserdados do campo e da cidade, e as favelas. Os movimentos que atuam há muitos anos no Brasil contra a violência do Estado são grandes exemplos da radicalidade e possibilidades de superação dessa organização. Desde os povos originários que se organizam historicamente contra a lógica estrutural do genocídio, passando pelas Ligas Camponesas que foram pioneiras na luta contra o latifúndio se organizando para enterrar seus mortos, e chegando até os movimentos negros e os movimentos de mães e familiares vítimas da violência do Estado hoje, é muito visível o que essa história de luta grita: para defender a nossa vida é preciso lutar pelos nossos mortos, pela nossa história, pelo nosso território e, ao mesmo tempo, dado que nenhuma solução do tempo presente é real, precisamos lutar contra o Estado capitalista e por outro futuro. A Revolução Brasileira, ou será uma revolução periférica, ou não será. A luta pelo socialismo, se não for uma luta alimentada pelo trabalho de base permanente e pela pedagogia do exemplo, objetivando uma mudança de cultura política e para a luta direta de massas populares entendidas em curto e longo prazo, estará fadada a repetir mais do mesmo discurso. Revolucionário não é aquele que fala mais sobre revolução, mas aquele que enfrenta as contradições mais agudas para construir as condições materiais e intersubjetivas necessárias para que ela se realize.

Partido e movimento

"Por isso que os nossos velhos dizem: "Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai". Isso não é importante só para a pessoa do indivíduo, é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade humana saber quem ela é, saber para onde ela está indo."
Ailton Krenak

1. Um dos desafios mais urgentes do nosso tempo é fortalecer o movimento das periferias aliado à construção de uma alternativa política independente e de massas. Isso passa por pensar que formas de organização são hoje capazes de canalizar e potencializar as dinâmicas da ação coletiva, entendendo que organização é sempre uma condição de possibilidade, que acompanha as mudanças do tempo histórico, e, sem ela, as lutas populares se tornam atos isolados sem capacidade de promover uma mudança estrutural da sociedade. Para isso, é importante nos debruçarmos sobre algumas perguntas abertas especialmente desde o declínio dos modelos emancipatórios do século XX: existe uma forma ideal e única de organização? Só há organização política quando há partido? O que é ser revolucionário num momento não-revolucionário? O que seria mais adequado hoje: replicar o receituário do modelo russo de 1917 da organização partidária ou o modelo da Nova Esquerda de 1968 pautado nos movimentos sociais? Mais do que escolher entre um ou outro, ou entendê-los como dois extremos - que representam, de um lado, a macropolítica, a verticalidade, a hegemonia, o centralismo, e de outro, a micropolítica, a horizontalidade, a autonomia e descentralização - o desafio parece ser, antes, o de assumir os limites e alcances de cada modelo e sua combinação e coexistência em rumo a uma nova síntese. Não se trata de pensar o partido acima do movimento, nem o movimento acima do partido. É preciso reconhecer que elas representam formas organizativas distintas que devem andar lado a lado, compondo uma articulação e paisagem mais ampla da disputa por hegemonia.

2. A melhor forma de nos aproximarmos do tema da organização política hoje é, portanto, repensá-lo à luz das próprias experiências em cena no estágio atual da luta política para, assim, criarmos novas métricas. Se na história do século XX, o partido centralizado formado por quadros profissionais se apresentou como uma forma universal dominante, hoje a organização política pressupõe uma ecologia política mais complexa e variada, um cenário de pluralidade de formas organizacionais que servem a diferentes fins, coexistindo e interagindo no tempo e espaço. O problema da estratégia revolucionária hoje está contido no problema de pensar esta ecologia organizacional, bem como o papel de lideranças sociais e políticas dentro dela.

3. Na nossa defesa da periferia como totalidade em movimento e parte ativa e integrante de uma nova utopia, partimos de um importante patamar: o Brasil carrega uma história muito forte e inconteste de organizações populares e do movimento de massas. Elas frequentemente esbarram, no entanto, com um fenômeno próprio do Estado na periferia: sua capacidade de capturar e assimilar movimentos espontâneos dentro da dinâmica e dos aparatos da superestrutura política. Com isso, os movimentos se vêem constantemente interpelados por um problema: como, afinal, se posicionar diante do Estado? Em que termos é possível pensar a relação entre o social e o político? Como criar uma relação prudente entre a luta social em torno da melhoria das condições de vida e a luta institucional que dá acesso a aparatos parlamentares? Como este é um debate importante para o movimento das periferias?

4. Não podemos ignorar, muito menos desprezar, o papel da guerra de posições. No entanto, por mais importante que seja a conquista de "tribunos do povo", na luta de classes, vencer sozinho ou isolado é o mesmo que perder. Na disputa de hegemonia, é preciso que as ações por dentro do Estado sejam orgânicas e estrategicamente comprometidas com a organização popular. Nesse sentido, do ponto de vista dos de baixo, qualquer disputa institucional e, especialmente parlamentar, deve sempre ser feita com os movimentos e não sobre eles. Isto é, as organizações que atuam nas periferias e movimentos sociais, quando dedicas a se auto-construir, se descomprometem com o que tem de mais importante e estratégico na organização desses movimentos. O que vemos como prática recorrente em muitas experiências no Brasil é uma prática aparelhista que usa o movimento social para promover organizações e indivíduos, provocando uma cultura perversa de dependência desses movimentos dos seus "benfeitores" e, em última instância, do Estado. Esta é uma lição histórica conhecida: a instrumentalização de movimentos para fins eleitorais e nas disputas de aparatos sindicais ou partidários. Além disso, não se deve esquecer que o parlamento, em particular, é uma estrutura de cooptação e manutenção das desigualdades históricas, não sendo, portanto, o lugar primordial em que as transformações sociais realmente acontecem. O gradualismo contido na estratégia petista de ocupar o Estado com quadros dirigentes e ir "democratizando a sua estrutura" se desdobrou em adaptação e acomodação, algo que representou uma mudança orgânica do PT em relação à sua origem nos anos 1980. A distorção criada foi uma "hegemonia às avessas": os governos petistas levaram à cabo o “programa dos dominantes” como sendo também o “programa dos dominados”. Esse transformismo deu forma a uma nova forma de dominação, em que parte dos “de baixo” passam a dirigir o Estado por intermédio do programa dos “de cima”, numa dialética que combina o consentimento passivo das massas com o consentimento ativo das direções. Isso gerou efeitos regressivos para a cultura política do país, despolitizando a luta social.

5. A militância e as direções partidárias que reproduzem uma fidelidade cega com uma cultura política monolítica ou oportunista, numa espécie de "leninismo platônico", produzem efeitos degradantes, e costumam deixar o solo árido nas periferias. Reconhecer isso não é o mesmo que defender o abandono pela esquerda de sua ambição hegemônica. Significa que, ao invés de insistir em formas absolutistas ou teológicas de se fazer política, devemos repensar as maneiras pelas quais a esquerda cria vínculos orgânicos e organiza sua base social, que está ao mesmo tempo mais dispersa em termos do mundo do trabalho e mais concentrada em termos geográficos e territoriais. As lideranças de esquerda ou se afastaram ou têm encontrado grandes dificuldades em dialogar com essa base social. É preciso de uma nova cultura política que produza relações mais recíprocas entre as formas organizativas e a cultura e subjetividade das periferias.

6. Além disso, luta social e luta política devem ser vistas como tarefas combinadas. É preciso romper com uma divisão segundo a qual o partido é responsável por fazer luta política e o movimento social organização popular, ou ainda, que a luta social deveria estar subordinada à luta política, como se houvesse uma hierarquia do que é mais importante ou estratégico: o partido em detrimento do movimento. Essa compreensão cria uma prática distorcida, em que as tarefas de construção no movimento social, por mais políticas que sejam, são postas num lugar secundário em relação às tarefas de construção partidária. Desse modo, as disputas nos territórios, a construção do trabalho de base, o enraizamento, isto é, tudo que se refere à disputa política de hegemonia que não seja diretamente a construção partidária-eleitoral, são relegados a um lugar menos importante. Consequentemente, os movimentos sociais são transformados em cliques de redes, meras possibilidades de filiações partidárias para disputa de aparato e banco de dados para comunicação direta para eleição de candidatos. Com isso, o sentido do movimento, a consciência coletiva da classe em si e para si, a solidariedade inerente às lutas territoriais e os “tempo lentos” de construção e enraizamento são desrespeitados sob o imperativo da disputa de aparatos.

7. A organização social e a luta política devem ser vistas como uma relação recíproca e mútua, um processo combinado de “politização do social" e "socialização do político”, por meio da pedagogização da política e politização dos territórios. Este é o desafio que o Emancipa persegue desde que passou a se autocompreender como um movimento social e político. Ao longo de nossa história, vimos que a construção cotidiana (baseada na luta por demandas concretas e necessidades radicais, como o direito à educação, o acesso à universidade pública e o direito à cidade) fazia parte, e era base constitutiva, de um projeto político alternativo. Ou ainda, que a luta social dos núcleos e cursinhos estava inevitavelmente ligada a tarefas políticas e estratégicas. Junto a isso, muitos de nós - mas não todos, nem a maioria - participamos da construção do PSOL, compreendendo seu potencial como uma ferramenta partidária consequente com as lutas do movimento. Nos engajamos na elaboração de uma visão estratégica e programa unificado, nos unindo e nos aliando à luta de outros movimentos sociais existentes no partido, reconhecendo que existia uma raíz comum às nossas reivindicações: o capitalismo como um sistema que coloca a lógica do lucro sobre a vida das pessoas, e que está pautado na exploração de classe, opressão de raça, gênero e devastação ambiental.

8. Muitas lições foram extraídas dessa experiência. Uma delas diz respeito aos desafios de construir uma alternativa política de novo tipo, um partido-movimento. Isto é, um partido que: a) se permita penetrar pelas características dos movimentos (por seu dinamismo e práticas coletivas de tomada de decisão, por exemplo); b) que esteja em constante movimento (na ação, nas lutas, não burocratizado e que mantenha uma distância prudente das estruturas do Estado); e c) que seja parte ativa dos movimentos (não querendo controlá-los, mas sim, apoiando estruturalmente e diretamente, construindo conjuntamente uma direção consciente no movimento de massas). Para levar a cabo essa concepção, o PSOL deveria encarar um dos seus principais desafios históricos: ganhar peso social e ampliar seus quadros populares (como lideranças comunitárias, educadores populares, estudantes, professores/as, mães). Para isso, defendemos uma política territorial consciente, entendendo o trabalho de base cotidiano nas periferias como parte estratégica da reconstrução da esquerda brasileira. Em nossa visão, o partido deveria estar ao lado e priorizar o apoio à organização dos setores precarizados, racializados e femininos que vivem nas periferias, construindo em comunhão um horizonte estratégico e um programa comum, que visem a superação da estrutura desigual, oligárquica, escravocrata, patriarcal da sociedade brasileira, que ao longo da história negou e espoliou sistematicamente os direitos dos explorados e marginalizados. Nesse processo, chegamos a construir no Emancipa uma plataforma política do movimento social ("Poder para as periferias"), bem como apoiamos candidaturas com esse programa, entendendo também que o PSOL poderia vocalizá-la, ao mesmo tempo que disputávamos para que ele cumprisse esse papel, aprendendo com a pedagogia do movimento social e com a formação de quadros populares empenhada pelo Emancipa.

9. Ainda que avanços tenham sido conquistados, a produção dessa síntese, no entanto, segue como um desafio. Em primeiro lugar, devido a própria tendência geral do peso eleitoral se sobrepor à organização de classe, reproduzindo, com isso, diversos vícios burocráticos e liberais que prejudicam a construção de um horizonte popular e estratégico. O PSOL em geral, e muitas das suas correntes internas, em particular, não estão imunes a isso; ao contrário, atravessam um processo contraditório: são sugadas pela mesma lógica parlamentar que uma vez criticaram. Com pouco peso e enraizamento, necessários para se tornar uma alternativa de esquerda com influência de massa, têm confundido a necessidade de peso social com a ocupação de espaços parlamentares, sofrendo com as dinâmicas da pressão institucional sem debate estratégico e sucumbindo a métodos outrora atacados, próprios de práticas reformistas e stalinistas. O que antes se apresentava como crítica aos expedientes utilizados para gerir o Estado tornam-se tática possível e aplicada para manutenção de base eleitoral e poucos aparatos. Por um lado, muitas vezes, por trás da aparência radical e revolucionária nas redes, universidades e espaços partidários, se escondem manobras políticas e financeiras e métodos aparelhistas, aparatistas, personalistas, burocráticos, cupulistas e de apagamento da história na relação com o movimento e a base social. Por outro lado, na avidez de ocupar e de reproduzir seu espaço no parlamento burguês, muitas organizações também reproduzem o pior das relações capitalistas e liberais, com assédio moral e sexual de trabalhadores, superexploração do trabalho e da saúde mental, elitismo, diversas formas de racismo do pacto narcísico da branquitude e divisão intelectual do trabalho.

10. Assim, do ponto de vista organizacional, nunca foi tão urgente o fortalecimento de uma política feita a partir dos de baixo. Na pirâmide do poder, no andar de cima, nos parlamentos, no executivo, nos postos de comando da institucionalidade, cabem poucos. Não cabe uma maioria parlamentar negra, indígena, feminista, classista. O mesmo podemos ver, infelizmente, nas organizações tradicionais da esquerda. O papel dos periféricos serve à estética e à propaganda, mas no comando, nas estruturas organizativas e nos debates sobre estratégia, está sempre longe de ser majoritário. Ser consequente com um projeto periférico exige não criar ilusões nem reduzir os horizontes de luta às urnas e à representação no executivo ou parlamento. Ao contrário, a construção de uma alternativa emanicipatória, classista, antirracista, feminista e antiLGBTfóbica só será possível se todas as conquistas, especialmente as que passem pela guerra de posições no Estado burguês, sejam conquistas efetivamente coletivas não só no discurso ou na aparência, mas nas decisões, na destinação dos recursos, das políticas e numa prática radicalmente diferente. A política do "tudo para todos, nada para nós" presente na ideia de "mandar obedecendo" construída pelo movimento zapatista do México segue sendo uma referência fundamental.

Por um projeto dos de baixo

"Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica"
Paulo Freire

"Um movimento contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma a educação na prática de liberdade"
bell hooks

A tarefa de reinventar um projeto dos de baixo é ampla e exige muitas ferramentas. Partindo da nossa experiência de construção na Rede Emancipa, indicamos aqui alguns princípios que consideramos fundamentais:

1. Organizar os desorganizados

A atual composição e configuração da classe trabalhadora é profundamente marcada pela condição periférica, pela precariedade, pelo racismo estrutural e pela crise da reprodução social e do cuidado. À medida que o mundo do trabalho muda, também muda a forma como as organizações devem se aproximar e se comunicar com sua base social. A fragmentação e volatilidade, somada à desconfiança com as representações políticas e sindicais tradicionais, produziu um amplo setor de "desorganizados", cuja força tem se expressado sobretudo por meio de ações diretas e uma pulsão classista insurgente pautada na angústia. Este setor, que condensa as características mais salientes do atual regime de acumulação “pós-fordista e periférico”, constitui hoje uma parcela significativa da atual dinâmica transnacional de resistências anticapitalistas, marcada pela busca de alternativas organizativas, seja à crise da estratégia socialista após o fim da União Soviética seja às contradições da esquerda institucional que se entrincheirou no poder.

De um ponto de vista mais ortodoxo, teríamos que esperar a reorganização dos trabalhadores do setor produtivo em sua roupagem industrial fordista; mas a realidade tem se apresentado mais complexa do que as visões canônicas da classe, e hoje quem se levanta e se mobiliza são sobretudo setores desorganizados, informais, das comunidades, em defesa de melhores condições para a reprodução da força de trabalho e da manutenção da própria vida nos territórios.

A própria Rede Emancipa nasceu da necessidade de organizar esse setor como parte estratégica da construção de um projeto político emancipador. Forjado inicialmente a partir de militantes do MTL (Movimento Terra Trabalho e Liberdade) – movimento que defendia a unidade entre os trabalhadores formais e a auto-organização de trabalhadores precarizados e excluídos (como sem-terra, sem-teto, camelôs, perueiros) revidando o processo de cooptação dos movimentos populares no campo e na cidade - o Emancipa se dedicou ao trabalho com setores populares e periféricos, especialmente a juventude. Os círculos (principal espaço de reflexão e ação coletiva da Rede) tiveram essa inspiração direta, a partir da incorporação da cosmogonia indígena em evidência com os "círculos zapatistas" (ou "círculos rebeldes") no México e os “círculos bolivarianos” na Venezuela. Tais referências ajudaram a criar as primeiras definições políticas do movimento: estar em conexão com as demandas sociais, nos territórios, onde a maioria vive – necessidade histórica e estratégica abandonada pelo PT e pela maior parte da esquerda capturada ora pelo eleitoralismo, ora pelo elitismo, e que, em nossa visão, não se realiza sem a educação popular, entendida como trabalho de base. A educação popular e a unidade da classe trabalhadora em seu conjunto tem que ser a base para enfrentar os vícios e a burocratização do velho sindicalismo, afastado da imensa maioria da classe. Um novo sindicalismo que tenha como centro a organização nos bairros, nos territórios, na vida cotidiana da nossa classe, unindo trabalhadores formais, informais, precarizados, desempregados, desalentados em uma mesma estratégia de luta por direitos coletivos e emancipação social é uma necessidade gritante.

Após quase duas décadas, a Rede Emancipa se firmou como um dos principais movimentos sociais de educação popular a nível nacional (com construção em grandes cidades e regiões metropolitanas em SP, PA, RS, RN, RJ, MG, DF, BA, CE, PR), ampliando referência também internacionalmente (Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe). Pode-se dizer que a aposta do movimento na organização dos desorganizados faz parte, por sua vez, de um processo político mais amplo, iniciado no Brasil no começo dos anos 2000: a constituição de um novo campo de recomposição e reagrupamento de forças mediante ao gradualismo dogmático do PT e sua abordagem conciliatória que visava combater as desigualdades sociais sem confrontar o capital. Deste movimento, emergiram outras importantes organizações e experiências, como MTST (1997), MPL (2004), PSOL (2004), Conlutas (2004), Intersindical (2006) e FNL (2014, vinda da experiência anterior do MST pela base).

2. Enraizamento e trabalho de base

A disputa de hegemonia por um novo bloco histórico não é possível sem enraizamento e uma elaboração política ligada, organicamente, aos seus próprios e maiores interessados. Não há emancipação sem imaginação estratégica e não há imaginação estratégica efetiva que não seja uma síntese construída no interior da classe trabalhadora. Não existe "classe para si" sem trabalho na "classe em si". Sem essa síntese, não há projeto político. É preciso reforçar a presença cotidiana na vida da classe trabalhadora, construindo com ela um programa e uma concepção de mundo própria, sistemática e coerente, e retomar, com ela, o sentido histórico de uma alternativa de poder independente, que leve profundamente em consideração a cosmovisão, a experiência de vida e de mundo e a sensibilidade popular, em todos os seus aspectos, aprendendo com experiência histórica dos cultos tradicionais afroindígenas e de matriz africana, e com a experiência mais recente das Comunidades Eclesiais de Base, como a religiosidade popular é também terreno féril de resistência, que não pode ser abandonado à demagogia da extrema-direita.

O trabalho de base é uma condição primordial nesse desafio. Ele não pode ser confundido com agitação, propaganda ou táticas eleitorais que tentam arregimentar números de votos ou de filiações partidárias. Essas práticas, muitas vezes mascaradas de trabalho de base, são as reais inimigas da organização popular. Ele também não é basismo, forma disfarçada de elitismo, que trata o povo como incompetente ao mesmo tempo que elogia sistematicamente suas ações espontâneas. Ele é a relação orgânica que se estabelece em determinado espaço ou território (seja no local de trabalho, de estudo ou em algum bairro), tendo como objetivo despertar, estimular, organizar, acompanhar e promover ações que respondam aos problemas do cotidiano da classe conectando-os às tarefas políticas mais gerais da luta emancipatória.

Apesar de ter sido um elemento fundamental tanto na luta contra a ditadura militar nos anos 1960 quanto na redemocratização nos 1980, o trabalho de base parece ter desaparecido como projeto estratégico, perdido entre técnicas de gestão da pobreza no capitalismo e a absorção da política pela lógica eleitoral-parlamentar. Contudo, a experiência da Rede Emancipa demonstra que não só é possível como é necessário e fundamental ter uma direção política comprometida com o trabalho de base e a educação popular que enfrente permanentemente essas pressões basistas mas também aparelhistas, eleitoralistas e demagógicas com o movimento. Contudo, o maior desafio do movimento segue sendo o de massificar sua organização tendo, ao mesmo tempo, horizonte estratégico e construção prática e cotidiana comprometida, em primeiro lugar, com o povo.

3. Por uma política com as periferias, não para elas

O ambiente político das esquerdas ainda é habitado por métodos antidialógicos, pautados num regime vertical de hierarquia, profissionalização e burocratização, repleto de vícios, messianismos e dirigismos. Trata-se de uma concepção bancária da política, essencialmente antipedagógica e insensível aos anseios, desejos e saberes populares e o lugar que eles ocupam numa estratégia de transformação coletiva e inter-subjetiva. A visão do "militante" ou "dirigente", repleto das melhores ideias, disciplinado, que se sacrifica pelas causas (ou fantasiando sua base) é uma concepção de militância esvaziada de sentido, que reproduz uma visão mágica, externa à própria classe, pressupondo que uma organização pode deter políticas pré-determinadas que seriam, então, "levadas até o povo".

A construção de um projeto político dos de baixo deve estar pautado, ao contrário, na auto-organização da classe, numa política construída com as pessoas, e não para elas. Isso requer, construção comum nas diferenças, teste prático das teorias e opiniões previamente estabelecidas, permeabilidade a novas ideias e práticas, mudanças de rotas, disposição de educar e aprender. Não é possível ter uma estratégia revolucionária e libertadora em teoria e, na prática, reproduzir uma prática autoritária, burocrática, cheia de manobras, ocultando informações, aparatista, distorcendo, estigmatizado, desqualificando opiniões divergentes, ou seja, baseada na desconfiança entre companheiros. Nossa diferença com o fascismo e a direita não é apenas de ideias, mas também de forma, tendo em vista que toda forma reflete um conteúdo.

4. O marxismo da educação popular

A educação popular é uma forma de sustentar o trabalho político a partir desta lógica, pautada na escuta e no cuidado. É uma prática realizada em comunhão, com alteridade e criticidade, desestabilizando saberes, hierarquias, espaços, refazendo identidades fixas (quem é “professor” e “aluno”, “dirigente” e “base”, o que é “saber escolar” e “saber popular”, a “escola” e a “comunidade”). Partindo dela, percebe-se que ninguém educa ou liberta ninguém - a emancipação é um processo dialógico feito em conjunto, enquanto os indivíduos se politizam e se educam uns aos outros. Nesse sentido, os oprimidos não são tábulas rasas, agentes meramente passivos e reprodutores de uma estrutura de dominação: possuem saberes e experiências, com papel ativo na cultura e na história.

Por tudo isso, reivindicamos Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido, a qual o Emancipa encontrou no decorrer de sua trajetória na educação e lutas populares. Para nós, as proposições freirianas representam tanto uma revolução pedagógica (com a proposição de um novo método radical de aprendizagem) quanto uma pedagogização da revolução. A combinação de uma pedagogia do oprimido (comprometida com a transformação social e pautada em um processo contínuo de reflexão, problematização e ação) e uma prática da liberdade, é parte constitutiva de uma pedagogia de esquerda e de uma nova teoria da ação revolucionária. Nela, todo educador é militante e todo militante, um pedagogo.

Ao auxiliar a "desinternalização" nos dominados dos interesses das classes dominantes, a educação popular é uma ferramenta da luta popular, que atua a favor da desnaturalização e transformação das desigualdades sociais, representando não só uma forma de conhecimento, mas uma tradição de luta pela vida. Essa tradição tem como fundamentos dois tempos: o da urgência e o do tempo lento. Por um lado na urgência da resolução de problemas concretos como a fome, a carestia, a moradia, o transporte, a saúde e a violência e, por outro lado, no tempo lento da construção política, entendendo o longo prazo da elaboração ideológica, da superação dos traumas causados no povo pelas políticas descomprometidas da velha política feita tanto por direitas e esquerdas, da solidificação de uma relação de confiança teórica, prática e simbólica. O tempo lento e a recusa de sermos engolidos pela velocidade contida nas relações sociais e políticas comandadas pela lógica do capital é a grande força do povo pobre para construir uma alternativa a esse sistema.

5. Solidariedade ativa

A guerra social e ideológica continua pulsante nas periferias, permeada pela luta cotidiana por melhores condições de reprodução da vida. Diante da atual conjuntura de crise, o trabalho de movimentos associativos, solidários e colaborativos são elementos centrais e ancestrais da organização popular, com a formação de redes de solidariedade ativa.

Tal trabalho remonta a uma tradição de organização popular que se pauta por uma estratégia integral, ou seja, capaz de organizar todos os aspectos e necessidades da vida do povo. O Partido dos Panteras Negras, por exemplo, de uma organização de autodefesa da negritude contra a violência do Estado, transformou-se em uma das mais importantes experiências políticas da década de 1960, influente até os dias de hoje. Durante um tempo considerável de sua existência, o Partido dos Panteras Negras tiveram como sua espinha dorsal um vasto programa de solidariedade. Entre as dezenas de programas de sobrevivência comunitária estavam a oferta de cafés da manhã gratuitos para crianças, distribuição gratuita de roupas e livros, atendimentos à população carcerária e seus parentes e vários programas de educação popular, saúde e cultura. A inspiração dos Panteras Negras foi e é central em todas as ações da Rede Emancipa, seja na recusa da absorção do movimento pela burocracia eleitoral e parlamentar sejam nos mais diversos programas sociais do movimento, dos muitos vinculados à educação mas também os que surgiram na pandemia de covid-19 onde o movimento se transformou em movimento de arrecadação de recursos, alimentos, produtos de limpeza e higiene e livros para responder às comunidades nas quais atuamos na luta pela vida.

6. Intelectuais orgânicos

A disputa por hegemonia passa pela formação e unidade ideológica de um bloco social e histórico que disputa o poder para a classe trabalhadora. Ela está vinculada, portanto, à elaboração de uma nova visão de mundo, capaz de dar sentido às coisas que a princípio aparecem e se apresentam de forma fragmentada no senso comum. Nisso reside o papel fundamental de militantes que, na qualidade de intelectuais orgânicos, elaboram uma interpretação coerente e global sobre os problemas vividos pelos periféricos, criando uma visão de totalidade capaz de munir sua ação política. Este é um processo orgânico pois o trabalho intelectual não é feito de cima para baixo; o intelectual orgânico é aquele que forma e é informado pelos movimentos e lutas sociais, participando delas não como orador, mas construtor e organizador, num compromisso e inserção ativo. É aquele que pensa a hegemonia como uma relação pedagógica.

Para isso, o intelectual orgânico pensa e vive em movimento. Ao buscar o "a reprodução ideal do movimento real", subverte as aparências imediatas, indo ao cerne das contradições, sustentando uma atividade intelectual rigorosa aliada ao engajamento político ativo, participando da circulação de ideias, manifestos, panfletos e reuniões. Episódios como a Revolução Haitiana, a Revolução Russa, a Resistência, a Guerra na Argélia, a Revolução Cubana, a Guerra do Vietnã, a luta contra as ditaduras latino-americanas forjaram muitos destes intelectuais. Sua participação em frentes e movimentos antifascistas, anticapitalistas, antirracistas, feministas, anticolonialistas e antiimperialistas na função de críticos não conformistas e contestadores do discurso dominante foi fundamental para a elaboração ativa de uma visão de mundo e um programa dos de baixo. Figuras como Paulo Freire, Florestan Fernandes, Amílcar Cabral, Lélia González, bell hooks, Milton Santos, Franz Fanon entre outras que nem sempre figuram com a importância que têm nos círculos da esquerda, continuam sendo para nós referências e fontes de inspiração.

Na nossa experiência, nos pautamos pela preocupação permanente em formar frentes de encontro e formação a partir de um projeto pedagógico orgânico e unitário, a exemplo das iniciativas desempenhadas no interior da Universidade Emancipa, dos círculos e espaços de formação de educadores nos cursinhos. A partir delas, participamos da tensão criativa entre produção intelectual acadêmica e ativismo popular periférico, construindo cursos que visam reunir uma nova geração de educadores, pesquisadores e militantes em torno do conhecimento e das práticas das periferias. Com isso, também atuamos sobre mais um sintoma de um país elitista e racista: diminuir a distância entre o conhecimento produzido nas universidades públicas brasileiras e os saberes produzidos nas periferias. Apesar desta distância ter sido reduzida com a política de cotas raciais e sociais, continua sendo fundamental que as periferias assumam cada vez mais protagonismo enquanto sujeitos de saberes e da elaboração de um novo projeto de sociedade, a partir dos diferentes ramos e campos disciplinares. Para isso, é fundamental continuar criando pontes entre a universidade e a educação popular.

7. Antirracismo e feminismo como eixo

No Brasil – um país de passado colonial e escravocrata que repõe diariamente o racismo estrutural e a opressão racial como estruturante da formação e das relações sociais brasileiras – raça e classe sempre andaram juntas. Além da classe trabalhadora brasileira ser majoritariamente negra, ela tem se tornado cada vez mais feminina, com destaque para a presença de mulheres negras que já são maioria dos trabalhadores informais no Brasil. Não compreender essa relação íntima entre classe, gênero e raça, constitutiva da formação social brasileira, nos leva, na prática, a uma compreensão incompleta da sociedade e da periferia em sua forma real, concreta, presente (o que, no fim das contas, também acaba geralmente se desdobrando em uma representação teórica e política demasiadamente embranquecida, masculina e colonizada de classe).

Um projeto político dos de baixo formulado por uma intelectualidade orgânica, portanto, é aquele capaz de dar voz às próprias questões materializadas nas lutas, discursos e linguagens dos periféricos, entendendo que elas giram em torno tanto de demandas de reprodução material quanto de reconhecimento simbólico. O antiracismo e o feminismo negro produz significações e estão impregnados na luta de classes hoje. Elas são parte de um novo tipo de expressão da política classista (necessariamente feminista e antirracista), enraizada nos próprios lugares e territórios em que ela se constitui, em seus padrões de socialização e condições de vida. O cenário periférico, urbano, do lar, tem produzido uma nova agenda política em torno de temas fundamentais da luta antissistêmica, como a violência policial e doméstica, o feminicídio, a uberização e a ausência de direitos básicos, como educação, saúde, transporte e moradia. Tanto nos espaços de círculos, quanto nos cursos da Universidade Emancipa, temos elaborado essa agenda, que parte de temas como o racismo estrutural, a questão indígena na América Latina, as lutas feministas e ecológicas, a cultura periférica, as vidas encarceradas, a pandemia e a saúde coletiva, a partir da territorialização do diálogo ativo entre intelectuais e ativistas.

8. Poder para as periferias

Em meio ao esforço de pensar estratégias e formas organizativas dos periféricos, também nos deparamos com a necessidade de elaborar um programa, capaz de sintetizar um conjunto de reivindicações que avaliamos centrais e estratégicas para um projeto político dos de baixo, dando voz, imaginação e poder a luta popular, nos bairros, favelas, escolas, universidades e territórios, em busca de novas formas de viver. Acreditamos que através da educação e da organização popular é possível construir uma alternativa que seja economicamente viável, socialmente justa e radicalmente ecológica. Apresentamos aqui e reivindicamos esses eixos programáticos que são fruto de um acúmulo coletivo na nossa prática de movimento.

Eixos programáticos
1. Poder para as periferias

No Brasil e no mundo, as periferias lidam diariamente com barreiras socioespaciais históricas, que são reforçadas pela lógica capitalista que progressivamente destrói nossos direitos e a natureza, e pela política racista que a legitima. Para superá-las, é preciso que nossas revoltas se revertam em organização popular e num projeto político que contraponha as estruturas de poder, dominadas pelo 1% mais rico, composto pelos pais, filhos e netos dos senhores de engenho, fazendeiros, abastados da Casa Grande. É preciso que a política seja efetivamente construída a partir e em função das demandas e dos locais onde estamos.

  • Auto-organização permanente nos territórios com fortalecimento do trabalho de base;
  • Em defesa radical da vida e da natureza: por melhores condições socio-ambientais no campo e na cidade e pela preservação da Amazônia e nossos biomas;
  • Pela demarcação das terras indígenas, quilombolas, caiçaras e outras comunidades para a preservação da memória, da cultura e do meio ambiente;
  • Não calarão as nossas vozes: que as nossas demandas e interesses não sejam apagados e silenciados.
2. Nossa luta é pela vida

Nos organizamos coletivamente para poder morar, trabalhar e viver com dignidade. A luta pela vida está contida no próprio papel que cumprimos nas nossas comunidades, como mães, trabalhadores, educadores, chefes de família. Queremos melhores condições de vida, com saúde e educação de qualidade, emprego, proteção social e melhores condições de trabalho e moradia.

  • Por renda permanente, emprego formal impulsionado e garantido pelo Estado e proteção de trabalho, sem discriminação racial ou de gênero, contra o trabalho infantil;
  • Em defesa do SUS: por saúde digna e a retomada do investimento público massivo na saúde pública;
  • Por uma política de assistência e de saúde mental pública, acolhedora e antimanicomial;
  • Pela valorização das tarefas de cuidado, que são em geral precárias, feminizadas, racializadas, mal-remuneradas e não valorizadas como trabalho, mas essenciais para a vida em sociedade;
  • Pela proteção e assistência às mulheres, pessoas não binárias e LGBTIA+ em situação de violência;
  • Pela descriminalização do aborto e garantir de acesso aos direitos reprodutivos pelas mulheres e pessoas trans pelo SUS;
  • Moradia não é privilégio, mas sim direito: pela regulação das taxas de aluguel e interrupção de ações de despejo, remoções e reintegrações; pela garantia de abrigo adequado para pessoas em situação de rua e pela manutenção integral dos serviços de água, luz e telefone, inclusive para inadimplentes;
  • Abaixo a fome: por segurança alimentar através do fortalecimento de bancos de alimentos, cozinhas solidárias, hortas comunitárias, e demais redes de solidariedade; pelo controle dos preços de gás, alimentos e ítens básicos;
  • Pela proteção e cidadania plena aos imigrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade que pediram asilo no Brasil: garantia de abrigo adequado, auxílio material para suas famílias e acesso aos serviços públicos.
3. Sem justiça, sem paz

O racismo que estrutura a sociedade brasileira normaliza o encarceramento em massa e a violência que já virou rotina nas periferias das cidades, atingindo um alvo bem determinado: as vidas negras, camponesas, indígenas e trans. Somada a isso, o Brasil possui um longo histórico de assassinato de ativistas e lideranças populares que representam tais causas.

A morte de Marielle Franco, Bruno e Dom, os 9 de Paraisópolis e 29 de Jacarezinho são alguns exemplos da crueldade e dos efeitos da violência nas favelas, nas fronteiras, da perseguição política. Precisamos dar um basta a essa realidade. Nossas vidas importam!

  • Pelo fim da violência policial, do genocídio da população negra e indígena, da militarização da polícia e da política, e do encarceramento em massa da população negra e periférica;
  • Pelo fim à guerra às drogas e da criminalização dos usuários; pela legalização da maconha com controle social e investimento público em pesquisas sobre seus usos e efeitos;
  • Pela proteção das pessoas que estão em privação e restrição de liberdade e respeito aos seus direitos e de seus familiares; por projetos concretos de educação para liberdade dentro e fora das prisões; apuração, revisão e reparação de todas as prisões injustas e arbitrárias;
  • Pela desmilitarização da policia e das escolas; pelo fim das operações policiais nas favelas e periferias; revisão dos protocolos de de atuação e ampliação de políticas de segurança com participação e acompanhamento popular;
  • Por uma outra política de segurança, pensada e desenvolvida para e com as periferias, movimentos negros e indígenas, com investimento efetivo e permanente em políticas de cultura, educação e de renda digna como alternativas ao crime e à violência;
4. Educar para a liberdade

Vivemos no Brasil um colapso da educação sem precedentes e em todos os níveis. Educadores e profissionais da educação sobrevivem em condições de trabalho precárias e de superexploração. A destruição arquitetada do Ensino Médio, da Educação Superior e da Ciência públicas é hoje a face mais dramática de uma guerra social que ainda está longe de terminar em nosso país. O modelo de educação democrático, crítico, criativo e inclusivo tem sido desmontado por políticas educacionais autoritárias, mercadológicas e de austeridade fiscal para benefício de um lucrativo sistema internacional de endividamento público. O retrocesso pode ser medido pelos altíssimos índices de evasão escolar, bem como a ampliação do analfabetismo nas periferias. Somado a isso, a pobreza, a violência e a falta de perspectiva afastam cada vez mais a juventude da escola e da universidade.

A educação popular tem um papel extremamente necessário de expor e desnaturalizar as fraturas da nossa sociedade e precisa ser ampliada. É justamente na ausência de uma perspectiva educacional livre, comunitária e emancipadora que os mitos e as ideias negacionistas, racistas, machistas e lgbtfóbicas se constroem. Nesse sentido, a luta cotidiana nas trincheiras da educação pública, gratuita e de qualidade é decisiva para seguir pensando, organizando e atuando na construção de outro mundo possível.

  • Por uma educação crítica, contrária a todas as formas de opressão, preconceito e estigma, para a realização da cidadania e emancipação do povo;
  • Por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade como direito de todas e de todos;
  • Pela valorização dos educadores e educadoras; por melhores salários e condições de trabalho para todos os professores, agentes escolares, merendeiras, faxineiros, vigilantes;
  • Em defesa da educação popular, autônoma e coletiva; por um programa de defesa e incentivo aos pré-ENCCEJA e pré-universitários populares e sociais;
  • Pela ampliação da democratização e universalização do acesso à universidade pública, bem como de sua estrutura (espaços de poder, distribuição de recursos, etc.) em todos os níveis;
  • Em defesa do financiamento público da pesquisa e ciência brasileira, contra os cortes e pela recomposição dos programas de bolsas de iniciação científica, cultural, extensão e pós-graduação;
  • Por uma escola preparada para cuidar da saúde mental; pela formalização de profissionais da psicologia e da assistência social como membros efetivos da educação regular.
5. Nossos quilombos, nossa história

O caminho para a transformação social também passa pela valorização da nossa cultura e por resgatar a história do nosso povo, nossas identidades e afirmar a produção de arte nas periferias. A cultura periférica fortalece nossos laços de afeto e de respeito, em contraposição ao ódio, à intolerância, à violência e ao racismo que permeia todos os âmbitos de nossa sociedade. Há anos, os cortes de verbas, a repressão aos artistas de rua, o descaso e a criminalização da produção cultural das periferias não permitem que muitos jovens tenham sua voz e seu espaço de inserção na esfera pública garantidos. Do samba de roda, do carimbó e do tambor de crioula, aos pagodes, bailes funk e paredões, a cultura popular é rica e determinante na autoafirmação dos sonhos e anseios dos brasileiros.

Precisamos ter uma política cultural viva, nas escolas e nos bairros, e que seja acessível para todos. Tendo em vista que o Estado é laico, também não podemos mais deixar que haja discriminação quanto a formas de religiosidade. É inadmissível que as religiões afro-indígenas e os cultos tradicionais de matriz africana continuem sendo discriminadas, tendo suas aldeias e terreiros incendiados e sua memória apagada. Precisamos de espaço para que nossa cultura seja livre de todas as formas de preconceito. Apesar da história oficial valorizar mais a presença europeia, o Brasil é solo preto e indígena. Não podemos deixar nossa história ser apagada aceitando a homenagem a bandeirantes genocidas, escravocratas, eugenistas e outros racistas.

  • Mais arte e educação: por uma escola como centro de solidariedade e produção cultural; por mais espaços de lazer e cultura para juventude; pelo fim da criminalização e pela valorização e incentivo de movimentos e artistas negros e periféricos; pela valorização e promoção da cultura popular, dos nossos encantados e da nossa história;
  • Pela recuperação, manutenção, ocupação e investimento público nos equipamentos públicos de promoção de artes, cinema, teatro e música popular;
  • Basta de racismo religioso: pela valorização da religiosidade popular em todas as suas práticas e cosmovisões; pelo combate sistemático à violência contra as religiões de matriz africana e indígenas; por políticas que incentivem a valorização da contribuição das culturas afro-indígenas para a sociedade; pela promoção ativa do diálogo interreligioso e transreligioso sob uma perspectiva crítica, popular e libertadora.
  • Brasil é solo preto e indígena: pela retirada de estátuas e homenagens a escravocratas, colonizadores e ditadores nas ruas, praças e lugares públicos de nossas cidades; pela promoção de projetos de igualdade racial em todo o país, resgatando e valorizando a memória de grandes entidades, movimentos, intelectuais, e militantes negros e indígenas históricos e contemporâneos.
Vem construir

Quem assina

Agatha Evangelista Gomes - PA

Alessandra de Freitas Borodinas - SP

Alfa dos Santos - Guiné Bissau

Ana Carolina Castro Luz Buzato - SP

André Luis Diniz Souza da Silva - DF

Angela da Costa Lameiro - SP

Anita Ferreira - SP

Ariane Machado - SP

Arthur Vieira de Medeiros - SP

Barbara Silva Scatolin - SP

Beatriz da Conceição Almeida - DF

Bruno Farias Cardoso - SP

Calebe Almeida - DF

Carla de Areia Magalhaes - SP

Cibele Assensio - SP

Clara Faria - MG

Cristiane Costa Dias - SP

Cristina Quirino - SP

Danielle Vieira - SP

Danillo Prisco - SP

Danylo Amilcar - SP

Douglas de Jesus - SP

Eliude Nicolau Araújo - SP

Emilly Silva Carvalho - DF

Erick Araujo da Silva - SP

Felipe Bandeira - PA

Flavio Siqueira Junior - SP

Flora Armani - SP

Francinézio Amaral - AM

Gabriel de Oliveira Negrão - SP

Gabriel Lindenbach - SP

Gildson Almeida Queiroz - MG

Giovanna Ferreira Oliveira - MA

Giovanna Marcelino - SP

Hadi Calixto - SP

Heitor Tulio Silva - PA

Heny Moutinho - SP

Hugo Gabriel Barros da Silva - SP

Igor Cassiano Ferreira - SP

Igor Veloso - MG

Itanny Mortari - SP

Janaelle Neri - MG

Jessica Santos Paixão - SP

Jéssica Pontes - SP

Joana Marcelly de Oliveira Almeida - DF

Joana Salém - SP

João Victor Pavesi - SP

Jorge Martins - PA

Júlia Barcelos Bittencourt - RJ

Julia Moutinho - SP

Kaleb Giulia Ribeiro Salgado - DF

Kelly Caroline Oliveira - AM

Larissa Fernanda - AM

Larissa Helena de Araújo - MG

Lethicia Rodrigues Gomes - SP

Ligia Lima - RN

Linnesh Ramos - RJ

Lívia Medina - SP

Luciana Oliveira Alves - SP

Luiz Carlos da Costa Gomes - PA

Maíra Cordeiro - PA

Marcelo Morais - SP

Maria Francieli Souza da Silva - SP

Maria Luiza Nascimento - SP

Mariana França - SP

Maurício Costa de Carvalho - SP

Marília Freire da Silva - AM

Maycon Bezerra - RJ

Mike Ferreira - RN

Naiara do Rosário - SP

Natalia Demes - AM

Olivia de Lucas - SP

Omar Garcia - SP

Pania Pires - PA

Patrick Henrique Ferreira - SP

Paul Kennedy - RN

Pedro Henrique Moraes Couto - DF

Quitéria Costa - BA

Ricardo José Alves - SP

Rita Maria de Freitas - SP

Roberto do Rosário - SP

Rubens Santos - SP

Ruy Gomes Braga Neto - SP

Samantha Carvalho Gregório - DF

Samara Crulz - DF

Samuel Vitor - DF

Sandro Vinicius Ortega Nicodemo - SP

Santh Lima da Silva - DF

Savio Arcanjo - RN

Sérgio Teixeira - PR

Thaís Geraldini - SP

Thamara Marley de Oliveira - DF

Thiago Mendonça - SP

Tiago Castro - SP

Tiago Morais - SP

Valeria Vale - RN

Winnie Bueno - RS